Cearense é diagnosticado com doença ultrarrara após quase 40 anos

No coração do sertão cearense, na cidade de Quixelô, a 342 quilômetros de Fortaleza, Francisco Abreu de Araújo, de 42 anos, finalmente descobriu o que causava tantos problemas de saúde desde a infância. Motorista de ambulância e socorrista do Samu, ele passou quase quatro décadas sem saber que sofria de uma condição ultrarrara: a quilomicronemia familiar (SQF), uma doença genética grave que exige um controle rigoroso da dieta, com o consumo máximo de 20 gramas de gordura por dia.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica como ultrarraras as doenças que afetam um caso ou menos a cada 50 mil pessoas. No mundo todo, estima-se que a quilomicronemia familiar acometa entre uma e duas pessoas a cada um milhão. No Brasil, porém, dados sobre sua prevalência ainda são escassos.

Uma vida marcada pela incerteza

Desde criança, Francisco era visto como “o menino doente” em Quixelô. Os sintomas eram constantes: cansaço, manchas na pele e internações frequentes. Sua energia para brincar ou ir à escola era limitada. Apesar dos exames de sangue sempre apontarem triglicerídeos elevados, nenhum médico conseguia cravar um diagnóstico.

A situação piorou na vida adulta. Mesmo seguindo dietas restritas, Francisco sofria episódios recorrentes de pancreatite, uma inflamação grave no pâncreas, desencadeada pelos níveis elevados de gordura no sangue. Só quando realizou um teste genético, após anos de idas e vindas a médicos de diversas especialidades, veio o diagnóstico definitivo.

O histórico familiar pode ter facilitado a manifestação da doença. Como os pais de Francisco são primos, as chances de que ele herdasse o gene mutado de ambos aumentaram. Isso porque a SQF só se manifesta quando o gene recessivo é transmitido pelo pai e pela mãe.

Os desafios do dia a dia

Controlar a quilomicronemia familiar vai muito além de tomar remédios. O tratamento principal é uma dieta extremamente rígida, que exclui praticamente qualquer alimento gorduroso. Para Francisco, o impacto na rotina é significativo.

Certa vez, ele tentou viajar a São Paulo, mas o passeio terminou com uma crise grave de pancreatite. “As dores começaram ainda no trajeto de volta. Quando cheguei, fui direto para o hospital e fiquei internado alguns dias”, contou. Desde então, viajar deixou de ser uma opção: “Não dá. Preciso seguir a dieta à risca e, fora de casa, é quase impossível encontrar algo que eu possa comer”.

A vida social também se tornou um desafio. Momentos comuns, como sair para jantar com amigos ou participar de festas de família, trazem desconforto. “Quando estou calado, logo perguntam se estou triste. Mas não tem nada disso. A verdade é que fico deslocado, porque não tem nada no cardápio que eu possa comer”, lamenta Francisco.

De acordo com a cardiologista Maria Cristina Izar, especialista em lipídios e biologia vascular da Unifesp, essa dificuldade de socialização é comum entre os pacientes com SQF. “A base dos encontros sociais no Brasil é a comida. Salgadinhos, doces, churrasco… tudo isso é proibido para quem tem a doença. Não é só a gordura visível, mas qualquer alimento com teor lipídico”, explica.

Sintomas que confundem diagnósticos

Um dos sintomas mais graves e comuns da quilomicronemia familiar é a pancreatite, que costuma surgir após o consumo de alimentos gordurosos, carboidratos simples ou bebidas alcoólicas. Além disso, há manifestações menos óbvias, como as lesões de pele chamadas xantomas eruptivos — pequenas elevações avermelhadas causadas pelo acúmulo de gordura, geralmente no tronco e nas costas.

Outro sinal típico é a lipemia retinalis, uma alteração na retina que deixa os vasos sanguíneos com uma coloração alaranjada ou amarelada, observada em exames oftalmológicos de rotina.

Por conta da diversidade de sintomas, a SQF é frequentemente confundida com outras condições que também causam triglicerídeos elevados. Como explica a Dra. Izar, muitos pacientes passam por vários médicos antes de receberem um diagnóstico preciso. “Eles buscam o gastroenterologista por causa da dor abdominal, vão ao dermatologista pelas lesões de pele, e, muitas vezes, a verdadeira causa só é identificada quando se realiza um teste genético”, ressalta.

Um alerta sobre doenças raras

A jornada de Francisco é um retrato fiel dos desafios enfrentados por pacientes com doenças ultrarraras. Além das dificuldades de diagnóstico, há o impacto emocional e social que essas condições causam.

No caso da quilomicronemia familiar, a informação ainda é a principal aliada. Conhecer a doença, suas causas e suas limitações pode transformar a vida de pacientes que, como Francisco, passaram anos lutando contra sintomas sem respostas.

Com o diagnóstico em mãos, Francisco encontrou um caminho, mesmo que cheio de restrições. “Agora sei o que eu tenho, e isso já traz um alívio. Não é fácil, mas é melhor do que viver sem saber”, reflete ele. Enquanto isso, sua história se torna um lembrete importante: o acesso à informação e a testes genéticos pode mudar vidas, especialmente nas pequenas cidades do interior brasileiro, onde os recursos médicos ainda são tão limitados.



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