‘Terra sem lei’: médicos relatam violência em festas e jogos universitários

A cultura de violência que se enraizou nos cursos de medicina e persiste na trajetória profissional de médicos é um problema que merece nossa atenção. A recente exposição de estudantes de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa) exibindo comportamentos chocantes durante um jogo de vôlei feminino trouxe à tona essa realidade perturbadora, mas não surpreendente. Médicos relatam ameaças, xingamentos, racismo e até estupros, que ocorrem desde o ingresso como calouros nas faculdades até a atuação no mercado de trabalho. Este artigo busca aprofundar a discussão sobre essa cultura de violência, suas origens e possíveis soluções.

A Cultura de Violência nos Cursos de Medicina

O cenário é alarmante. Médicos formados em universidades públicas de São Paulo como André* descrevem a cultura de violência como generalizada, afetando principalmente mulheres e negros. Essa cultura, enraizada desde os anos 1990, é alimentada por tradições questionáveis e comportamentos machistas e racistas. Embora leis tenham sido criadas para proibir trotes, as atividades das atléticas e as violações que ocorrem em festas e jogos universitários ainda persistem sob um véu de sigilo.

Flávia Kuhn, médica fisiatra e professora de Humanização na Saúde e no SUS na Faculdade de Medicina da USP, ressalta a supervalorização dessas tradições no curso de medicina, perpetuando comportamentos prejudiciais. A chegada de mais mulheres aos cursos de medicina nas últimas décadas resultou em um aumento nas denúncias, mas a representatividade nas posições de poder ainda é predominantemente masculina.

A Hierarquia e o Silêncio

Um dos fatores que perpetuam essa cultura de violência é a hierarquia. Veteranos impõem regras e os calouros são forçados a obedecer, gerando uma repetição de comportamentos prejudiciais de geração em geração. Isso se estende para além das atléticas, dificultando ainda mais as denúncias de violência. A médica psiquiatra Elisa Brietzke observa que, muitas vezes, os estudantes evitam denunciar devido ao medo das consequências que isso poderia ter em suas carreiras.

Violência de Raça e Gênero

A violência atinge de forma desproporcional estudantes negros, mulheres e LGBTQIA+. Relatos de comportamentos misóginos, homofóbicos e racistas são frequentes. Os hinos das atléticas também promovem uma cultura de violência verbal, com letras machistas e de apologia a símbolos fálicos.

Conscientização e Mudança

A conscientização sobre essa cultura de violência muitas vezes só ocorre durante o internato, estágio obrigatório no curso. Contudo, mesmo essa exposição a outras realidades nem sempre é suficiente para mudar comportamentos arraigados. O Conselho Federal de Medicina (CFM) alega ter um código de ética para estudantes e destaca a importância de melhorar o ensino e incluir conteúdos éticos nas salas de aula como medidas para prevenir esses episódios.

Necessidade de Reformas e Responsabilização

A exposição de casos de violência na prática médica evidencia uma cadeia de erros que deve ser responsabilizada. Não basta apenas culpar os médicos diretamente envolvidos, pois existe toda uma estrutura que deve ser responsabilizada, desde a formação até a prática profissional. A reformulação da disciplina de ética médica, medidas de responsabilização aos envolvidos e maior fiscalização em eventos e jogos universitários são medidas necessárias para diminuir esses episódios.

Conclusão

A cultura de violência nos cursos de medicina e sua persistência na carreira médica são problemas que afetam não apenas os estudantes, mas também a sociedade como um todo. É essencial que as instituições de ensino, o CFM e a sociedade como um todo se unam para erradicar essa cultura tóxica e promover um ambiente mais seguro e inclusivo para futuros médicos e pacientes. A mudança é possível, mas requer esforços concertados e medidas concretas.